É consensual, dentre os autores que discutem as sociedades contemporâneas, a idéia de que os códigos a serem decifrados para o entendimento da dinâmica sociocultural localizam-se na esfera do consumo, ou seja, para entendermos melhor o mundo que nos cerca, temos que lançar o olhar para a forma como as mercadorias são consumidas, uma vez que a sociedade, que antes girava em torno da esfera da produção, passa agora a produzir-se na esfera do consumo.
Partindo desse pressuposto, a expressão cultura de consumo vem sendo utilizada para enfatizar que os princípios que estruturam o mundo das mercadorias são centrais para a compreensão das sociedades contemporâneas e que na esfera do consumo é que os indivíduos buscam construir suas identidades e tecer suas relações sociais, posicionando-se no mundo e dando sentido às suas vidas.
Uma das modalidades de consumo que mais cresce atualmente está relacionada ao culto ao corpo. Os dados referentes ao faturamento da indústria de alimentos dietéticos apontam que este segmento da indústria alimentícia vem crescendo fortemente, saltando de US$ 200 milhões para U$$ 336 milhões, no período de 1991 a 1994, enquanto no mesmo período o número de fabricantes desses produtos no Brasil cresceu de 12 para 401. De acordo com a Abiad, entre 1991 e 2000, o faturamento dos fabricantes de produtos light e diet foi multiplicado por dez.2
Ao lado da indústria “Diet”, coloca-se a dos cosméticos, que também cresce assustadoramente, indicando a “materialidade” do processo em questão. O setor – que envolve três segmentos básicos: higiene pessoal, cosméticos e perfumaria – teve um crescimento acumulado de 126,66% no período de 1991-1995, passando de um faturamento líquido de R$ 4,9 bilhões, em 1996, para R$ 8,3 bilhões em 2001 e alcançando a marca dos R$ 17,3 bilhões em 2005. Na primeira metade da corrente década (entre 2001 e 2005), o crescimento médio do faturamento do setor foi de 10,7% ao ano.
Nada diferente foi o desempenho de outros setores econômicos ligados ao tema da construção da aparência: moda, serviços de beleza, cirurgias plásticas e academias de ginástica constituem, atualmente, ótimos negócios.
Mas o que teria levado as sociedades contemporâneas a intensificar a preocupação com o corpo e colocá-la como um dos elementos centrais na vida dos indivíduos? É possível arriscarmos algumas hipóteses.
A exposição do corpo e, conseqüentemente, preocupação com sua forma e apresentação intensificaram-se no decorrer do século XX. Alguns marcos importantes podem ser apontados, no sentido de elucidarmos a construção dessa tendência. A década de 1920 foi crucial na formulação de um novo ideal físico, tendo a imagem cinematográfica interferido significativamente nessa construção. No fim dessa década, mulheres, sob o impacto combinado das indústrias do cosmético, da moda, da publicidade e de Hollywood, incorporam o uso da maquiagem, principalmente o batom, em seus cotidianos e passam a valorizar o corpo esbelto, esguio.
O pós-guerra trouxe à cena dois importantes elementos: a expansão do tempo de lazer e a explosão publicitária. Movimentar o corpo pela prática do esporte ou da atividade física passa a ser, cada vez mais, um imperativo nas sociedades contemporâneas. E essa tendência de comportamento está, certamente, relacionada à expansão do tempo de lazer: férias remuneradas, a explosão dos campings tornando as praias mais acessíveis, são elementos que contribuirão, a partir da segunda metade dos anos cinqüenta, para a “revolução de veraneio”, que imporá um novo conceito de férias de verão, em que a exposição do corpo ocupa espaço de centralidade.
A explosão publicitária no pós-guerra, por sua vez, foi, sem dúvida, grande responsável pela difusão de hábitos relativos aos cuidados com o corpo e às práticas de higiene, beleza e esportivas, preconizadas por médicos e moralistas burgueses desde o início do século. É importante ressaltar a mudança de comportamento que se impunha nesse momento: ao colocarem suas imagens (estrelas de cinema com sorriso branco e cabelos brilhantes anunciando creme dental e xampu), esses profissionais da publicidade colocavam em jogo novas práticas, difundiam uma nova maneira de lidar com o próprio corpo e um novo conceito de higiene.
Na contra-cultura dos anos 60 temos a difusão da pílula anticoncepcional, da chamada “revolução sexual” e do movimento feminista, elementos que, associados ao “hippismo” contribuirão para a colocação da corporeidade como importante dimensão no contexto de contestação que marca a década. O corpo é colocado em cena pela contracultura como lócus da transgressão, do delírio e do “transe”, através das experiências da droga e do sexo.
Por fim, os anos 80 podem ser entendidos como um marco importante para a temática, na medida em que nessa década a corporeidade ganhou vulto nunca antes alcançado, em termos de visibilidade e espaço no interior da vida social, pois se no período anterior os cuidados com o corpo visavam a sua exposição durante o verão, a partir da década de 80 as práticas físicas passam a ser mais regulares e cotidianas, expressando-se na proliferação das academias de ginástica por todos os centros urbanos.
Paralelamente a esse processo temos o advento da chamada “geração saúde”, a partir dos anos 80, representativa de certa postura frente à vida que, de certa forma em oposição ao padrão de comportamento representativo da geração de seus pais, levantam a bandeira anti-drogas, com destaque para o tabagismo e o alcoolismo, ao lado da defesa da ecologia, do naturalismo e do chamado “sexo seguro” – fenômeno também fortemente relacionado ao advento da aids – que em alguns casos significa a revalorização da virgindade feminina, não mais até o casamento, mas até a certeza de que o primeiro relacionamento sexual signifique o envolvimento afetivo prolongado com o parceiro.
A centralidade que a preocupação com a corporeidade veio assumindo no decorrer do século XX está ligada, ainda, à própria história da moda, que pode ser entendida como as imagens sociais do corpo, o espelho de uma determinada época e, nesse sentido, é interessante lembrarmos que no século XIX a camisola só podia ser usada no interior do quarto e qualquer referência à ela, em público, seria motivo de rubor. Cabelos soltos, da mesma forma, só eram permitidos no espaço privado, sendo o penteado uma exigência para o espaço da rua. Mostrar o corpo não era também muito comum, as pessoas decentes andavam de luvas e chapéus, mostrando apenas o rosto, com exceção dos trajes de noite femininos, que apresentavam grandes decotes.
Gradualmente, a flexibilidade no vestuário vai ganhando espaço frente à rigidez. Os homens passam a usar colarinhos mais flexíveis e chapéus de feltro moles no lugar dos colarinhos duros e chapéus rígidos, enquanto as mulheres vão abandonado os corpetes e as cintas, que cedem lugar a calcinhas e sutiãs. As saias vão se encurtando, as meias valorizam as pernas e os tecidos pesados vão sendo substituídos por mais macios que salientam as curvas do corpo.
Em termos de vestuário, o século XX tem sido marcado pelo desnudamento e flexibilidade cada vez maiores. A aparência física passa a depender cada vez mais do corpo e cuidá-lo torna-se uma necessidade, pois ele deve ser preparado para ser mostrado. Mas cada passo que se deu no sentido de desvendar o corpo não foi livre de constrangimentos, conflitos e escândalos: a bermuda dos escoteiros dos anos 20 foi bastante censurada, uma vez que mostrar as pernas publicamente era um tabu; os biquínis nos anos 1950 gerou muitos conflitos entre pais e filhas; a ousada mini-saia dos anos 1960 escandalizou antes de se tornar moda e o monoquíni dos anos 1970 ainda é tabu. Hoje, nas cidades, os homens adotam a bermuda como traje de passeio, e não raro, usam a camisa aberta ou o tronco nu. É a exposição pública do corpo, que ganha cada vez mais terreno.
Não podemos deixar de ressaltar o papel da mídia como importante agente no processo em pauta. No que diz respeito à mídia impressa, vale destacar que a temática corpo ganha cada vez mais espaço desde os anos 1980, quando nascem as duas maiores revistas voltadas ao tema – Boa forma (1984) e Corpo a corpo (1987) – as quais abriram o caminho para um filão que vem sendo habilmente explorado pelas indústrias editoriais.
Em decorrência do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, a percepção do corpo na sociedade contemporânea é dominada pela existência de um vasto arsenal de imagens visuais. O cinema de Hollywood difundiu novos valores da cultura de consumo e projetou imagens de estilos de vida glamourosos para o mundo inteiro. As estrelas de cinema ajudaram a conformar um ideal de perfeição física, introduzindo novos tipos de maquiagem, cuidados com cabelos, técnicas para corrigir imperfeições.
Vale lembrar o grande interesse, gerado através da máquina publicitária do cinema e da televisão, pelas vidas privadas das estrelas e celebridades, pelos seus conselhos de beleza, seus exercícios e suas dietas. As revistas especializadas, ao publicarem os “segredos das estrelas” oferecem aos seus leitores a chance de se auto-ajudarem, com anúncios chamando a atenção para providências contra acne, seios grandes, seios pequenos, pele oleosa ou ressecada, celulite, etc. Assim, as imagens trazidas pelas revistas sobre os personagens do cinema e da televisão, acabam por provocar uma revisão da auto-imagem dos leitores, num jogo de reconstruções constantes de identidades, característico da modernidade.
Por fim, nesta tentativa de compreendermos o fenômeno do culto ao corpo, cabe ainda ressaltar a tomada da juventude como um valor social. É perceptível a atual busca de juvenilização pelos idosos em seus estilos de vida, pela prática de esportes, alguns radicais, pelo vestir-se de maneira despojada, pela freqüência aos salões de dança, enfim, pelo que o sociólogo inglês Mike Featherstone identifica como transformações no ciclo da vida. Trata-se de um dos traços mais marcantes da cultura contemporânea, em que as barreiras entre juventude e velhice se esgarçam e “ser jovem” coloca-se como um imperativo. Esta idéia nos leva a pensar que a imagem da juventude, associada ao corpo perfeito e ideal – que envolve as noções de saúde, vitalidade, dinamismo e, acima de tudo, beleza – atravessa, contemporaneamente, os diferentes gêneros, todas as faixas etárias e classes sociais, perpassando e compondo, de maneira diferenciada, diversos estilos de vida.
E a fábrica de imagens – cinema, TV e publicidade – tem, certamente, contribuído para isso. Em nenhum outro momento da história houve tão intensa produção e difusão de imagens do corpo humano como hoje podemos perceber. A associação entre a produção de imagens corporais pela mídia (com destaque para o cinema e a televisão) e a percepção dos corpos/construção de auto-imagem, por parte dos indivíduos, é imediata.
É curioso observarmos que o momento em que o culto ao corpo ganha espaço no interior da vida social é, coincidentemente, próximo do apontado como o ponto de inflexão das sociedades capitalistas ocidentais, que passam a ter uma nova configuração. Se a modernidade, a partir do pós-guerra, entra numa nova etapa e ganha contornos diferenciados, o mesmo ocorre ao culto ao corpo, ou à relação dos indivíduos com seus corpos. Evidentemente, a existência de técnicas de manipulação e cuidados com o corpo não é exclusividade das sociedades contemporâneas. Elas existiram em outras espacialidades e temporalidades, como nos atesta Marcel Mauss, autor pioneiro nas ciências sociais a tomar o corpo como objeto de análise.
Em seu pioneiro ensaio, Mauss define como técnicas corporais os modos de tratar, usar, lidar com o corpo e lança a idéia de que essas são descobertas pelas sociedades, transmitidas e modificadas no decorrer do tempo. Partindo dessa definição de Mauss, podemos afirmar que a atual busca de cultuar e modelar o próprio corpo é caracterizada por diversas técnicas corporais legitimadas por nossa sociedade e está localizada dentro de um movimento social mais amplo, que vem se acentuando no contexto contemporâneo, no qual a técnica vem representando o principal artifício de controle da natureza e o consumo o espaço privilegiado de constituição de vínculos identitários e de sociabilidade.
* Ana Lúcia de Castro é professora do Departamento de Antropologia da Unesp (Campus de Araraquara) e do Programa de Pós-Graduação em Moda, Cultura e Arte do Centro Universitário Senac.
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1 Conforme dados divulgados pelo Guia brasileiro de alimentos e bebidas dietéticos (1992) e pela r evista Veja, n. 34, p. 73.
2 VIEIRA, Adriana Carvalho Pinto; CORNÉLIO, Adriana Regia. “Produtos light e diet: o direito a informação ao consumidor”. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 530, 19 dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2007.
(Envolverde/ComCiência)